O som sempre esteve presente nas nossas vidas. Desde o quarto mês de gestação, é o primeiro sentido que desenvolvemos. É por meio do som que se dá nosso primeiro contato com o mundo exterior. Com ele, nossa personalidade ganha seus contornos iniciais. Mas, na sala escura do cinema, muitas vezes, ele não tem o seu valor reconhecido.
Para destacar o papel fundamental do som no cinema, a mostra Som: a história que não vemos apresenta no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, de 13 de setembro a 2 de outubro, uma seleção de longa-metragens que marcaram a história da utilização do som, desde o primeiro filme com áudio sincronizado à imagem – “O cantor de Jazz” (The Jazz Singer, 1927) – até produções recentes do cinema nacional como “O som ao redor” (2012).
Logo depois, de 4 a 23 de outubro, a mostra será apresentada no CCBB São Paulo. O projeto é patrocinado pelo Banco do Brasil, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura.
“Som: a história que não vemos” é dedicada a discutir e valorizar o uso do som, seja narrativamente, artisticamente ou criativamente; sublinhando sua função essencial no cinema contemporâneo, com sistemas surrounds e tecnologias que expandem cada vez mais seus limites. Serão realizados dois debates com o curador Bernardo Adeodato – no dia 20 de setembro, às 19h, com a participação dos cineastas Eduardo Nunes e Marília Rocha; e, no dia 28, às 19h, com os designers de som Paulo Ricardo e Ricardo Cutz.
A mostra promove também matinês nos fins de semana, às 11h, com filmes para todas as idades: a animação da Disney Fantasia (1940), o primeiro filme feito em surround, nos dias 16 e 23 de setembro; e “Wall-E” (2008), de Andrew Stanton, nos dias 17 de setembro e 1º de outubro. Entre as sessões especias, está também a de “Gravidade” (2013), de Alfonso Cuarón, no dia 27 de setembro, às 18h, com tradução de libras e audiodescrição.
O som no cinema pelo curador Bernardo Adeodato
Tudo começa em 1927, quando o filme “O cantor de Jazz” (The Jazz Singer). A chegada do som afetaria o trabalho dos atores (que agora teriam que usar suas vozes) e o modo de produção das obras – um período muito bem descrito no clássico musical (gênero, aliás, criado diretamente pelo advento do som no cinema) “Cantando na chuva” (Singing in the Rain, 1952). Em pouco tempo, cineastas começaram a experimentar com o som, não só no que concerne os diálogos, mas também brincando com associações variadas com a imagem, como são os casos de “M – O vampiro de Düsseldorf”(1931), do genial Fritz Lang, onde um assovio nos relaciona com o assassino antes mesmo de vermos seu rosto, e do ainda mais radical “Entusiasmo” (Enthusiasm, 1930), primeiro filme sonoro de Dziga Vertov.
Com o passar dos anos o cinema continuou a experimentar com a faixa sonora do filmes seja com ruídos ou música. O que seria das piadas de Jaques Tati em “Playtime” (1967), da construção contra pontual do som e o uso do silêncio em “Persona” (1966), de Ingmar Bergman, ou da construção de tensão em filmes como “Era uma vez no oeste” (Once Upon a Time in the West, 1968), de Sergio Leone, e 2001: “Uma odisséia no espaço” (2001: A Space Odissey, 1968), de Stanley Kubrick. No meio de toda essa mudança e evolução de linguagem um estilo viria a se associar ao som numa parceria que traria grandes avanços para o cinema. Em 1928, Walt Disney fez sua primeira animação com som, o curta “Steamboat Willie”, onde ruídos e música são essências para o desenvolvimento da história, seu ritmo e principalmente na criação de seu mundo fantástico. Em 1940, a Disney lança
“Fantasia” (1940), uma animação construída a partir da música, pioneiro na tecnologia de reprodução multicanal, o primeiro filme feito em surround – infelizmente essa tecnologia era muito cara na época para que pudesse ser democratizada nas salas de exibição Com tempo, o som tosco e ruidoso que era exibido em mono cedeu seu lugar para os sistemas surrounds de ultra potência e qualidade.
Cada vez maior é o usos de efeitos, ambiências e de outros recursos sonoros para que realidades sejam reproduzidas e até mundos que nunca existiram sejam criados com autenticidade. Na década de 70, dois filmes foram cruciais para o impulso estético e tecnológico e principalmente para a criação de conceito que amplia o papel do som e seu valor para contar uma história: “Star Wars Episódio IV: Uma nova esperança” (Star Wars Episode IV: A New Hope, 1977), de George Lucas, e “Apocalipse Now” (1979), de Francis Ford Coppola. É nestes filmes, impulsionados pelo trabalho de Ben Burtt no primeiro e de Walter Murch no segundo, que surge o profissional responsável por criar a concepção de som de uma obra do inicio ao fim do processo, o “sound designer” ou designer de som. Acompanhando esse movimento vemos o surgimento de diretores que dão grande importância ao som para criar e compor um mundo imaginário ou de sonho, onde questões filosóficas e psicológicas são destacadas como em “Eraserhead” (1977), de David Lynch, e “Stalker” (1979), de Andrei Tarkovsky.
Nas últimas décadas o som vem sendo cada vez mais explorado e ganhando importância na construção do cinema, a qualidade do som de um filme passou a ser valorizada no cinema de arte e de entretenimento. No brasileiro “O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho, o som fala do cotidiano, torna-se personagem e cenário da história, expandindo a tela de cinema (como os muros e grades de nossas casas), ajudando o espectador a se localizar espacialmente e narrativamente. O avanço da tecnologia permanece em curso. Vemos hoje a chegada do sistema Dolby Atmos, onde um número ilimitado de canais de áudio nos envolvem, fazendo com que o espectador pare dentro da tela, vivendo uma experiência única e fantástica como em “Gravidade” (Gravity, 2013), de Alfonso Cuáron.
Ainda assim, apesar de tudo, de mais de 80 anos de variadas experimentações, o cinema continua sendo pensado como uma arte primordialmente visual – apenas recentemente, por exemplo, a teoria crítica e academia de maneira geral se voltaram para a faixa sonora. Som: a história que não vemos vem portanto preencher uma lacuna sobre o conhecimento e atenção dada a essa ferramenta que não é simplesmente técnica e tem a capacidade de contar e delinear histórias, podendo aumentar o potencial dramático do cinema em grande escala. Esta mostra é direcionada para os mais diversos cinéfilos e audiófilos, mapeando toda a história do cinema sonoro através de alguns pontos cruciais de sua trajetória.
Fonte: CCBB/RJ