Ruy Guerra chegou ao Brasil no final dos anos 1950, quando se mexiam as peças do que seria conhecido mais tarde como Cinema Novo. No início da década seguinte, ele se tornou um pilar do movimento com a realização de “Os fuzis” que, ao lado de “Vidas Secas” e “Deus e o diabo na terra do sol”, se tornou um ícone cinemanovista no Brasil e no exterior.
Conheci-o mais cedo, quando ele fazia “Os Cafajestes”, seu primeiro longa-metragem brasileiro, um filme à altura de tudo que se fazia então de moderno no cinema mundial. A riqueza de jump cuts; o primeiro nu frontal de uma mulher, no belo e interminável travelling circular na praia de Norma Bengell; bem como o plano final do filme, a inaugurar o tema da estrada sem direção do Cinema Novo e dos jovens cineastas que o sucederam; são elementos preciosos na inauguração de uma linguagem moderna de negação do lugar comum.
Generoso e sempre bem disposto, Ruy aceitou montar meu episodio de “Cinco vezes favela”, em 1962, no mesmo Laboratório Líder em que Nelson Pereira dos Santos montava o de Leon Hirszman. Foram noites inesquecíveis de aprendizado. Num momento em que não havia no Brasil escolas de cinema, era um privilegio aprender tudo que aquele premiado formando do Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC), de Paris, tinha para nos ensinar. E ainda nos transmitir seu próprio talento pessoal e a imensa capacidade crítica sobre a sua e a obra dos outros.
Além da história do cinema e de seus modos de fazer, Ruy Guerra foi sobretudo um grande mestre do rigor moral no cinema. Todos nós estávamos interessados em refletir o estado do mundo no cinema, mas ele, além disso, era de todos nós aquele que possuía a mais rigorosa consciência do mundo. E não a abandonou nunca, com um comportamento permanente de grande rigor moral.
Tenho enorme orgulho de ter aprendido tanto com ele, uma vocação de mestre que ele transmite até hoje às novas gerações. E me sinto com muita sorte por ter sido seu contemporâneo na mesma atividade, ter sido companheiro desse grande artista, pensador e cidadão do mundo.
Ruy Guerra é uma poderosa e definitiva contribuição do Brasil à história do cinema mundial.
Cacá Diegues