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Ruy Guerra – Teatro *Por Paulo José

Estou convencido de que em sua forma atual o teatro vai desaparecer. Não totalmente, porque seguirá com outras formas que talvez já não se possa chamar “teatro”. Nosso estilo de vida atual consiste em tornar tudo fácil e agradável, de modo que até estando de pé com a escova de dentes na boca se possa selecionar setenta canais de TV.

Estamos desenvolvendo um alento intelectual e artístico muito curto, temos pressa, queremos fazer tudo agora… Tudo isso vai contra o teatro. O teatro consiste em oferecer tempo, fechar a porta, tapar a luz do dia, e passarmos 3 ou 4 horas concentrados em uma situação.

O texto acima não é de Ruy Guerra, é do diretor de teatro Peter Stein, mas bem poderia ser assinado pelo primeiro; quem conhece a obra de Ruy sabe disso. Seu cinema não aceita concessões, há de ser feito sem aviltar a idéia do filme, sem o oportunismo de linguagem ou temática que esteja na moda. Para ele, “o travelling é uma questão moral”.

Ruy Alexandre Guerra Coelho Pereira, brasileiro nascido em Moçambique, estudou cinema no Institut des Hautes Études Cinématographiques, IDEHC, e tem contra si um currículo que os que se ralam de inveja jamais perdoarão. Como perdoar um cara que é roteirista, realizador de filmes, fotógrafo, dramaturgo, poeta, escritor, montador, ator, poliglota, que teve companheiras notáveis como Nara Leão; Leila Diniz (Leila Diniz, cara!), Cláudia O’Hanna. E como se não bastasse, é parceiro musical de Chico Buarque, Carlos Lira, Edu Lobo, Francis Hime,Sérgio Ricardo, Baden Powell, Marcos Valle, Luiz Eça, entre outros craques da música brasileira. E não quer ficar rico, que diabo!

E fez mais de 20 filmes, um exagero posto que apenas Os Fuzis já o consagrariam como um dos grandes realizadores do cinema mundial. Sem falar dos prêmios internacionais: Medalha de Ouro no festival de Veneza, Urso de Prata no Festival de Berlim, mais de sessenta troféus e medalhas. E a coisa fica pior pois o Cahiers du Cinema qualificou Os Fuzis como um dos Melhores dez filmes da história do Cinema. Ah, e é “assim,ó” com o Gabriel Garcia Marques, a quem chamava “Gabo”, sem gabolice, apenas um nome: “Gabo”. Com este currículo, Ruy, “eles”, os ralados de inveja, jamais o perdoarão.                                                                                                

Nossa relação se estreitou quando nos encontramos no Festival de Veneza, Ruy com o seu “Sweet Hunters” ou “Tendres Chasseurs”, filmado na Bretanha, eu levando Macunaíma, do Joaquim Pedro de Andrade. De nossas conversas foi amadurecendo a idéia de fazermos um filme no Brasil.

– Cansei de fazer filmes herméticos. Queria fazer uma história popular, alguma coisa assim como Arlequim, Servidor de Dois Amos, peça clássica de Carlo Goldoni”, disse Rui. A idéia muito me animou. Afinal, a peça de Goldoni era uma matriz que tinha sido usada por Sergio Leone em “Per um pugno di dollari”e Kurosawa em Yojimbo (ou SanJuro?) Voltamos para o Brasil no mesmo avião já iniciando a produção `de Os Deuses e os Mortos, título carregado de ambigüidade, quem seriam os deuses e quem os mortos? Fomos para o sul da Bahia, região do cacau, onde foi feito todo o filme. Eu fiz a Produção Executiva e sob a direção de Ruy, Norma Bengell, Othon Bastos, Dina Sfat, Ítala Nandi, Nelson Xavier, Milton Nascimento como ator e compositor, Dib Lufti na fotografia e câmera, ganhamos quase todos os prêmios no Festival de Brasília de 1971. O cinema de Ruy é visceral, seus personagens estão em situação-limite, personagens em fuga, sem identidade nem origem como o Sete Vidas em Os Deuses e os Mortos. Assim, à medida que avançava a filmagem, mais distante ia ficando o Arlequim, Servidor de Dois Amos e tomava forma  aquele universo feudal, terra de poucos donos e muitos miseráveis, de mortos-vivos povoando as fazendas, um filme barroco, uma visão apocalíptica de um mundo em apodrecimento. O roteiro que dera início ao processo era apenas um ponto de partida, um starter.

O filme, consagrado pela crítica cá dentro e lá fora, não interessou aos exibidores e as poucas cópias feitas quase não foram exibidas. Mas não tem nada não, alguns dos melhores planos-sequência do cinema brasileiro estão lá. Essa foi nossa volta por cima.

O filme é belíssimo, para sempre.

Ruy gosta muito de seu papel de professor. Os alunos também. Mas não se contenta em acender luzes para clarear o caminho dos outros. Quer ele próprio estar sempre abrindo caminhos novos e quando não está fazendo cinema, ou escrevendo um roteiro, ou montando, faz teatro. Mas gosta de companhias raras. Quem já enfrentou Woyzeck, de  Büchner, não quer menos do que James Joyce. Sim, o Joyce de Ulisses, do Retrato do Artista Quando Jovem, o qual escrevera três peças para o teatro, duas se perderam e a terceira, Exilados, ficou à espera que Ruy viesse dar-lhe o sopro vital. Longa Vida a Exilados!

Paulo José – Ator


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